As entranhas da dívida brasileira
Esta reportagem esclarece como funciona um dos pilares da
corrupção no Brasil: apropriação de recursos via dívidas. Leitura
obrigatória para quem quer entender sobre os títulos da dívida interna e
quem são os credores.
“A dívida é um mecanismo financeiro que se autorreproduz e se autoalimenta.” Para Maria Lucia Fatorelli, por exemplo, o país tem feito dívidas novas por conta dos megaeventos, principalmente estados e municípios.
Viviane Tavares
do Rio de Janeiro (RJ)
23/09/2013
Maria
Lucia Fatorelli foi nomeada pelo presidente Rafael Correa para integrar
a Comissão de Auditoria Fiscal da Dívida Pública do Equador, que atuou
entre 2007 e 2008. Como resultado do trabalho que ela ajudou a
construir, o país diminuiu em 70% uma dívida sobre a qual não havia
comprovação.
Tudo indica que a situação do Brasil
seria semelhante, mas, nesta entrevista, ela conta que aqui têm sido
fracassadas as tentativas de se realizar uma simples conferência dessa
conta que a sociedade brasileira paga sem saber exatamente por quê. E
que, hoje, somando as dívidas interna e externa, já ultrapassa U$3
trilhões de dólares. Esta demanda também esteve presente nas ruas
durante as manifestações do mês de junho, mas, assim como foi feito com a
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que tratou da dívida brasileira
em que Fatorelli também contribui com trabalhos, os parlamentares e a
imprensa fizeram questão de esquecer.
Auditora
fiscal e coordenadora do Movimento Auditoria da Dívida Cidadã, Fatorelli
fala à Poli sobre o caminho árduo que o movimento tem seguido no
Brasil, relembra as origens da dívida, aponta os principais credores e
explica ainda as razões (ou a falta delas) para que continuemos a pagar
juros tão altos.
O que é a dívida?
Maria Lucia Fatorelli – Em
âmbito federal, a dívida se divide em externa, que atualmente é de U$
450 bilhões de dólares, e interna, que é de 2,8 trilhões de dólares. A
diferença entre uma e outra é que a externa é contraída no exterior, com
credores estrangeiros, e a interna teoricamente seria contraída com
credores internos, ou seja, nacionais. A questão é que, considerando a
ausência de controle de capitais e o ingresso de grande número de bancos
no país e com poder, hoje quem tem direito de comprar os títulos da
dívida interna são em grande parte bancos internacionais. Portanto, essa
teoria de dívida interna e externa deveria ser revista.
Atualmente,
as duas dívidas estão sob a forma de títulos. Não existe mais aquele
antigo contrato que você contrai com determinado credor. Desde a década
de 1990, o endividamento passou a ser por emissão de títulos. Se ele
emite internamente, a dívida é interna, se emite no exterior, a dívida é
externa. Então, os que compram essas dívidas são os credores da nossa
dívida. Nós já pedimos informações sobre quem são eles, mas o Tesouro
diz que é informação sigilosa e libera essas informações somente em
bloco. A última informação que tivemos, durante a CPI da dívida externa,
é que são bancos, bancos de investimento, fundos de pensão nacionais e
estrangeiros. Enfim, mais de 95% dos títulos está na mão do setor
financeiro.
Como contraímos essa dívida?
Ao
falarmos da dívida, podemos chegar até ao descobrimento do Brasil. Para
garantir nossa independência, nós assumimos uma dívida que Portugal
contraiu com a Inglaterra para justamente lutar contra nossa
independência. Já que não conseguiram o que pretendiam, empurraram a
dívida para nós. A nossa história com a dívida começa com uma
característica marcante até hoje: falta de contrapartida. Na década de
1930, quando Getúlio Vargas era presidente, ele questionou a que se
referiam os pagamentos. Ele determinou que o Ministro da Fazenda da
época levantasse esses contratos e iniciou uma auditoria. E qual foi a
surpresa depois desse levantamento? Apenas 40% da dívida na época se
comprovavam por contrato. Além disso, foram encontradas deficiências. O
ciclo desta dívida atual começou na década de 1970. No início desta
década, nossa dívida externa era de U$5 milhões de dólares e a interna
era desprezível. Para a importância do país, essa dívida era considerada
pequena. É preciso lembrar que estávamos em uma ditadura, no período em
que se aprofundou o regime ditatorial. Exatamente em 1971, os EUA
aboliram a paridade do dólar com o ouro. E isso possibilitou a emissão
indiscriminada de dólares, a mera impressão de qualquer quantidade de
dólares. Isso gerou um excesso de liquidez, excesso de moeda que foi
canalizado por meio do sistema bancário, que passou a oferecer este
excesso de moedas a países, principalmente a países com ditadura
militar. Na nossa avaliação, essas ditaduras entraram para possibilitar o
domínio econômico e o instrumento para sacramentar esse domínio
econômico foi o endividamento. Tem até um livro interessante que se
chama Confissões de um assassino econômico, de John Perkins, que era um
agente do sistema financeiro americano. Ele era uma das pessoas que
vinham oferecer esses empréstimos para estimular grandes obras, como
construção de viadutos, hidrelétricas, pontes, que foram muito marcantes
na ditadura, como uma espécie de compensação, para criar um clima de
progresso, tudo isso que simbolizou a ditadura militar. O que eles
ofereciam, além das taxas baixas, era o tempo de carência, em geral de
cinco anos. Então, você pegava um empréstimo e depois empurrava para o
próximo que assumisse o mandato. Neste período, de 1970 a 1980, a nossa
dívida cresceu 1000%, pulou de U$5 milhões de dólares para U$50 milhões
de dólares em âmbito federal. E neste, contexto, os estados e municípios
entraram neste esquema. Não existe literatura sobre essa dívida dos
estados, o trabalho da nossa auditoria é inédito. Fomos pesquisar as
resoluções do Senado, porque todas as dívidas destes dois entes têm de
ser aprovadas pelo Senado Federal. E descobrimos que a maioria das
resoluções da década de 1970 e 1980 sequer informa quem foi o agente que
ofereceu o empréstimo e a destinação dele. Existe uma suspeita,
portanto, de que os estados ajudaram a financiar a ditadura. Mas ainda
não conseguimos concluir este estudo.
No governo do Lula dizia-se que tínhamos pago a dívida. O que liquidamos naquele momento?
Isso
foi muito grave. O que o presidente Lula em 2005 pagou foi apenas a
dívida externa com o FMI [Fundo Monetário Internacional]. Na época,
existiam 300 milhões de dólares de dívida externa e foram pagos U$15
milhões de dólares. Esse pagamento representou 2% da dívida, se somarmos
a interna e a externa. Para pagar isso, o Brasil fez emissão de títulos
da dívida interna em reais para pagar em dólar. O que houve não foi
pagamento, foi troca. Deixamos de dever ao FMI para passar a dever a
bancos que compraram os títulos. Na dívida com o FMI, eram cobrados
juros de 4% ao ano e estamos emitindo títulos na base de 19% ao ano.
Trocamos uma dívida de 4% por uma de 19%. Mas alguém pode argumentar que
não devemos ao FMI, e isso é um ponto positivo. Mas, no dia desse
pagamento, o [Antonio] Palocci publicou uma carta na página do
Ministério da Fazenda argumentando que o pagamento ao FMI não
significaria o rompimento dos compromissos do estatuto do Fundo, que
vincula as políticas ao Fundo, dá a ele o direito a todas as informações
do país, inclusive aquelas a que não temos acesso – o FMI tem porque
fica dentro do Ministério da Fazenda.
Fazendo
uma comparação simplista: se chega à minha casa uma conta cujos gastos
eu não reconheço, procuro entender e, se não achar justo, não pago.
Quais as razões das resistências à auditoria da dívida se não se sabe a
origem de tudo que o Brasil paga?
Esta é
uma questão fundamental. Agora, só faz essa pergunta quem tem
consciência do peso da dívida e de que quem paga a dívida somos nós. A
maioria das pessoas não tem consciência porque acha que o Lula pagou e
outra grande parte não tem noção do quanto isso faz falta para [a
garantia dos] outros direitos como saúde, educação... E esse é o papel
do movimento da Dívida Cidadã: mostrar o peso desta dívida e que somos
nós que devemos determinar os investimentos da União. Isso é o resultado
da desinformação da nossa sociedade. A mídia comercial é financiada
pelos grandes beneficiários desse sistema, portanto, a ela não interessa
divulgar o que nós produzimos. Por isso é tão importante todo o
trabalho da mídia alternativa que dá espaço a este tema.
Quem são esses grandes grupos?
O
Citigroup, por exemplo, está aqui desde a década de 1970 e hoje é um
dos dealer que tem o poder de comprar títulos direto do Tesouro. Se você
ou eu quisermos comprar diretamente, não podemos, temos que ter um
intermediário. Mas um grupo de 12 bancos tem, e a cada seis meses há uma
pequena mudança, mas o Citigroup está sempre presente. E se esses
dealers não concordarem com alguma coisa, se o juros não estiverem do
jeito que eles querem, ficam de braço cruzado até chegar aonde querem.
Por isso se chamam dealer: assim como no poker, quem dá as cartas é quem
manda no jogo. É muito sugestivo eles se chamaram assim, não é?
Como foi a sua experiência na auditoria da dívida do Equador e o que podemos trazer de aprendizado para o Brasil?
Eu
fui nomeada por decreto do presidente Rafael Correa, quando ele criou
uma comissão para fazer a auditoria. Ele nomeou vários equatorianos e
seis estrangeiros ligados a movimentos sociais dedicados a questões da
auditoria pública. No dia da inauguração da comissão, o ministro da
fazenda do Equador estava com uma cartilha da auditoria cidadã que
lançamos no Fórum Social Mundial em 2006 e sinalizou que ela tinha sido
uma das inspirações da criação da comissão. Nós tivemos acesso aos
arquivos, tínhamos o poder de pedir informações a qualquer órgão, que
tinha o dever de nos fornecer essas informações. Foram contratadas 50
pessoas para a comissão, algumas de nível técnico, para trabalhar. Mas,
ainda assim, sofremos boicotes de funcionários ligados aos esquemas
fraudulentos, porque a dívida é ligada a fraudes em todos os países.
Tivemos dificuldades, dados distorcidos... Foi analisada a dívida
externa contratada com bancos privados internacionais, e lá também o
Citigroup era o campeão. O processo era idêntico ao do Brasil, até em
dados, só o valor que aqui é multiplicado em muitas vezes. Era a típica
dívida com juros mais altos e mais fraudulenta, e isso torna o estudo
mais difícil porque você tem que ter prova, documento, fundamento
jurídico. O resultado foi um relatório de mais de mil páginas, todo
comprovado com documentos. Quando entregamos o relatório, o [presidente]
Correa já suspendeu o pagamento dos juros que venceriam nos próximos
dois meses. E naquele mesmo ano, o valor que ele pagaria de juros foi
aplicado em saúde e educação.
A revista inglesa The Economist
publicou o aumento dos gastos nestas duas áreas em 70%. Além disso, o
Correa submeteu nosso relatório ao crivo jurídico de profissionais
internacionais e de instâncias nacionais equivalentes ao nosso
Ministério Público (MP) e Advocacia Geral da União (AGU) e, após o
retorno desses pareceres, ele fez um ato soberano: uma oferta para
resgatar os próprios títulos por 30% do valor com um certo prazo. Assim,
95% dos títulos foram comprados, anulando 70% da dívida. Isso
significou uma economia de U$7,7 bilhões de dólares. O Equador criou uma
outra comissão agora para os tratados bilaterais de investimento e me
convidou novamente, mas não tenho condições dessa vez. Nós aqui no
Brasil não temos esse tipo de tratado.
Existem outros países que já fizeram auditorias como essas?
Tivemos
relatos de países da América Latina e da África e houve uma proposta de
formarmos o clube de Quito, em contraponto ao Clube de Paris e de
Londres, onde os credores se reúnem. Sabemos também de várias auditorias
cidadãs: houve um trabalho muito importante na Argentina, no Paraguai
antes do Golpe a partir da Controladoria do Governo, uma iniciativa no
Peru por um processo judicial, e na Grécia, Espanha, Bélgica,
Portugal...
Por que a CPI da dívida no Brasil não foi para frente?
A
CPI possibilitou acesso a documentos que antes não conhecíamos,
inclusive, alguns da época da ditadura. Vimos diversas dívidas do setor
privado assumidas como dívidas públicas, alguns escândalos da década de
1990. Enquanto no Equador tínhamos uma equipe montada com 50 pessoas,
aqui no Brasil éramos apenas dois – eu e um auditor da Caixa Econômica
Federal. Só isso já foi um boicote para o rendimento do trabalho.
Fizemos um relatório neste corrido período de nove meses, por conta da
experiência no Equador. Além disso, os partidos não indicavam os
representantes para a CPI e, por sorte, localizamos um parecer feito
pelo Michel Temer, quando ele era advogado de um partido, dizendo que se
houvesse esse tipo de boicote deveria ser feita uma denúncia para o
Supremo, para que este designasse os membros da CPI na marra. E
colocamos [o parecer] na mão do Ivan Valente [deputado pelo Psol-SP] no
dia em que o Michel Temer estava presidindo a Câmara. O Ivan Valente
falava e indicava ‘essas palavras são suas, presidente’. Foi um vexame
para ele ser desmoralizado por suas próprias palavras. Só conseguimos
tocar a auditoria porque achamos esse parecer. Este parto só para
instalar! Eu fui requisitada para trabalhar na CPI e só depois de um mês
fui liberada para isso, por conta dos trabalhos que tinha que concluir.
Depois disso, na hora de montar a equipe, também não conseguimos. Mas,
mesmo assim, montamos um relatório da dívida externa e interna, que está
no Ministério Público.
Atualmente, o governo continua se endividando?
A
dívida é basicamente um mecanismo financeiro que se autorreproduz e se autoalimenta. Considerando que o Brasil paga os maiores juros do mundo, e é
impossível ter recurso para pagar todos esses juros, o que fazemos?
Emitimos dívidas para pagar juros. É como se estivéssemos no cheque
especial. O país tem feito dívidas novas por conta desses megaeventos,
por exemplo. O núcleo do Rio de Janeiro [da Auditoria Cidadã] teve
acesso a documentos do estado do Rio de Janeiro com organismos
internacionais, latino-americanos, inclusive, para obter recursos e
financiar as obras da Copa do Mundo.
Com os
megaeventos, quem está se endividando mais são os estados e municípios.
Após a Constituição, os estados passaram a poder emitir títulos para
pagar precatório e dívidas por condenações judiciais, depois foram
proibidos de emitir título para isso. A maior dívida dos estados é com a
União, que financiou as dívidas a partir de 1997, mas foi em condições
tão onerosas que, quanto mais o estado paga, mais ele deve. É o mesmo
esquema dos bancos reproduzido.
Fonte: http://forum.antinovaordemmundial.com/
Publicado originalmente na Revista POLI – Nº 30 – Set./Out. 2013 – www.epsjv.fiocruz.br
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